quinta-feira, 30 de junho de 2016

Dossiê A era das descobertas: uma américa reconstruída

Como é bem sabido, a palavra “índio” foi fruto de um equívoco. Cristovão Colombo, julgando haver chegado à Índia, assim se referiu à população nativa que encontrou. Desfeito o engano, o termo persistiu. Foi utilizado durante todo o período colonial e pós-colonial. Há algumas décadas, certos pesquisadores o acusaram de etnocêntrico. Argumentavam que os índios não se percebiam de maneira genérica, preferindo empregar as suas origens étnicas específicas, como guaranis, por exemplo. Lembravam ainda a sua utilização na construção de políticas de dominação da população nativa pelos impérios ultramarinos. Os termos, porém, são flexíveis e podem adquirir diferentes significados. As críticas devem ser consideradas, mas não justificam o seu abandono. Os maiores interessados na discussão, os próprios índios, passaram a empregá-lo em suas relações com os europeus desde meados do século XVI, com conotações bastante versáteis.

Mais problemático, porém, é que o uso do termo de maneira desavisada pode nos conduzir a um grande equívoco: considerar que existia algum tipo de unidade da população americana na virada do século XV para o XVI. Nada mais distante da realidade. A América era habitada por distintos grupos com organizações sociais específicas, cujas relações entre si eram variáveis. Há diferentes formas de analisar tal diversidade. Algumas consideram as respectivas línguas, outras se baseiam nas relações com o território ou, ainda, nas organizações políticas. Nunca é demais lembrarmos que não se trata de hierarquizar as diferenças. Elas respondiam a uma série de fatores, desde adaptações ao meio ambiente até escolhas dos envolvidos. Entre as organizações com maior centralização política na época destacam-se os astecas e incas. Seus impérios formaram a base da América espanhola, e a conquista não pode ser explicada sem considerarmos as suas principais características. Mas, quando falamos de conquista, geralmente pensamos no México e no Peru, desconsiderando o igualmente importante caso brasileiro, por vezes equivocadamente apresentado como mais pacífico. A população do litoral brasileiro também era muito diversa, com predominância dos tupis-guaranis.

GUERRA SEM FIM NA COSTA BRASILEIRA

A organização baseava-se em pequenos grupos, que se relacionavam entre si sobretudo através de atividades guerreiras. Obtinham assim prisioneiros, que eram sacrificados em cerimônias de antropofagia. Os cativos mais valorizados eram os líderes, pois a antropofagia era considerada uma forma de vingar os ancestrais que haviam sido sacrificados pelos rivais. Inicialmente, essa prática foi aproveitada pelos portugueses, que assim obtinham uma importante mercadoria intercambiada nos primeiros contatos: os escravos.

Os grupos tupis-guaranis receberam bem os portugueses, e outros europeus, que começaram a desembarcar na costa a partir de 1500. O comércio era desenvolvido com interesse pelos índios, que ofereciam pau-brasil, animais exóticos e escravos. Providenciavam também o necessário à sobrevivência dos recém-chegados, sobretudo informações e alimentos. Em troca recebiam mercadorias variadas, como machados de ferro, que diminuíam significativamente o tempo gasto em certas atividades. As relações mudaram após o estabelecimento das primeiras unidades produtivas no Brasil na década de 1530. As atividades envolvendo a fabricação do açúcar, desde o plantio da cana até a pesada rotina nos engenhos, traziam exigências diferentes das até então enfrentadas pelos índios. Ali foram empregados em grande medida escravos da terra. A fim de atender à nova demanda por mão de obra, os tupis-guaranis passaram a envolver-se em guerras cada vez mais frequentes para obterem uma maior quantidade de cativos, por vezes incentivados pelos interesses dos portugueses.

As guerras foram perdendo a sua função ritualística à medida que seus objetivos visavam atender ao comércio com os colonos. Com o passar do tempo, os portugueses, em busca de mais escravos, começaram a atacar também os grupos com os quais mantinham relações comerciais, geralmente à traição. Quando perceberam a mudança, os índios promoveram uma série de revoltas e foram capazes de colocar em risco a permanência lusitana no Brasil.

Os portugueses também reagiram: em 1549, o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, chegou à Bahia acompanhado dos primeiros jesuítas que vieram à América. O projeto de Dom João III era “pacificar” os índios e regular a sua relação com os colonos, oferecendo-lhes algumas garantias que nem sempre foram cumpridas. Por outro lado, para os índios que atacassem os portugueses não haveria perdão: sucederam-se assim as guerras de conquista. As mais célebres foram as conduzidas pelo terceiro governador-geral, Mem de Sá, que promoveu uma série de combates contra os índios na costa. Esteve ainda à frente da conquista da Guanabara, onde os franceses haviam se estabelecido em meados da década de 1550, auxiliados pelos seus aliados tamoios. As guerras de conquista foram um grande negócio: os envolvidos obtinham terras para o monarca e para si, além de uma grande quantidade de cativos aprisionados nos conflitos. Com esses bens, terras, escravos indígenas e prestígio político, os conquistadores obtiveram o necessário para estabelecer-se no Brasil. Trata-se das origens das primeiras fortunas coloniais.


ASTECAS NA MESOAMÉRICA

Os astecas estavam localizados na Mesoamérica, região que hoje abrange grande parte do México, Guatemala e Belize. Inclui ainda algumas áreas de Honduras e El Salvador. No momento da conquista espanhola, em 1519, o seu domínio era recente em termos históricos: tinha menos de um século. Eles haviam migrado do norte e, após uma série de vicissitudes, se estabeleceram no que futuramente seria a sede do seu império: Tenochtitlán, base da atual Cidade do México. A Mesoamérica havia passado por uma sucessão de organizações imperiais intercaladas com momentos de fragmentação política e relativa autonomia de unidades menores, que disputavam entre si a proeminência sobre as demais. Essa era a situação quando os astecas chegaram. Inicialmente eles se envolveram nos confl itos locais, mas o cenário começou a mudar rapidamente em 1428. Na ocasião, três cidades, Tenochtitlán, Texcoco e Tacuba, se uniram e empreenderam campanhas militares vencedoras, dando início à construção do império asteca. Logo, Tenochtitlán se projetou sobre as outras.

Império, nesse caso, não pressupunha políticas de assimilação da população conquistada. Tratava-se em grande parte de uma relação tributária: os derrotados eram transformados em pagadores de impostos. As guerras também eram uma forma de obtenção de cativos necessários ao sacrifício cerimonial. Apesar de parecer algo espantoso para a nossa sensibilidade, o sacrifício humano era uma das bases da vida religiosa de vários grupos indígenas. Para compreendê-lo, devemos evitar julgar o passado com os olhos do presente e considerá-lo no seu respectivo contexto. Na Mesoamérica, por exemplo, as imolações faziam parte de crenças muito arraigadas, compartilhadas por diferentes povos. No caso dos astecas, destacava-se a relação com o seu deus principal: Huitzilopochtli. Para garantir-lhes um caminho vitorioso, ele deveria ser satisfeito com sacrifícios constantes.

ÍNDIOS ALIADOS AOS EUROPEUS

Certos aspectos da lógica do império asteca viabilizaram a conquista e a construção da sociedade colonial. Como não havia maiores vínculos com o poder central, as diferentes unidades que o compunham tampouco se mostraram muito leais diante da chegada dos espanhóis.

Para muitas, em um primeiro momento, a conquista parece ter significado apenas a troca do destinatário dos tributos devidos. Porém, foi um antigo problema dos astecas que influenciou de forma fundamental na conquista: os seus inimigos tlaxcaltecas. Estes repeliram todos os intentos de domínio, derrotando-os em várias ocasiões. A chegada dos espanhóis lhes pareceu uma oportunidade de livrar-se de vez dos adversários. Então forneceram os guerreiros e as informações necessárias para Cortés preparar a investida contra Tenochtitlán. Após a vitória, os tlaxcaltecas passaram a apresentar-se como os grandes aliados dos espanhóis, com quem tinham contribuído para derrotar um inimigo em comum: os astecas.

OS INCAS E SEU PODER PÓS-MORTE

Já o império inca estava localizado nos Andes centrais, com capital em Cuzco. Atualmente, a área corresponde ao Equador, Peru e Bolívia, além de partes do Chile e da Argentina. Sua organização política e cultural estava ancorada em práticas muito antigas naquele espaço, que foram incorporadas e reajustadas pelos incas. Assim como no caso dos astecas, o seu domínio nos Andes também tinha apenas cerca de um século na época da conquista espanhola. A lógica política vigente foi fundamental para promover a sua expansão territorial: os governantes, os chamados “incas”, mantinham parte de seu poder depois de mortos. Sua corte, que se chamava panacae era formada pelos seus descendentes, exceto o que se tornava o próximo inca, ficava responsável pela administração dos bens do falecido. Tratava-se não apenas de propriedades materiais: relacionava-se também com os territórios que haviam sido por ele conquistados, incluindo os tributos pagos pelos seus habitantes. O novo inca tinha então de recorrer à expansão para angariar territórios e bens para si. Essa crença na manutenção pós-morte de domínios era muito difundida nos Andes. A sua múmia continuava inserida na vida social, participava de cerimônias e era consultada pela panaca em várias situações.

Apesar de ter sido eficaz para a construção do império, tal lógica começou a apresentar alguns limites, que são fundamentais para compreendermos a conquista pelos espanhóis no princípio da década de 1530. Em 1525, o inca Huayna Cápac morreu no Equador, onde estava envolvido em campanhas militares expansionistas.

Então os limites da lógica do império já podiam ser sentidos: os incas estavam encontrando populações cada vez mais difíceis de conquistar. Enfrentavam ainda problemas administrativos causados por um império agigantado, onde o governante tinha de compor com o poder político e econômico das cortes dos seus antecessores. O herdeiro de Cápac, Huáscar, iniciou uma série de reformas que suprimiam o poder das panacas. O resultado foi uma guerra civil que contrapôs a sua facção à de Atahualpa, que se apresentava como um sucessor alternativo ao posto de inca. Atahualpa venceu, mas não usufruiu os frutos do seu triunfo. A caminho de Cuzco para tomar posse, passou por Cajamarca, onde encontrou Pizarro e seus homens. Dali não sairia vivo. Pizarro o aprisionou e exigiu um grande resgate para soltá-lo. Os índios cumpriram com a sua parte; Pizarro não. O resgate foi pago e mesmo assim Atahualpa foi assassinado.

Os espanhóis então partiram para Cuzco, onde encontraram um império enfraquecido pela guerra civil. As reações aos conquistadores foram diversas. Alguns índios não tardaram muito em envolver-se com os espanhóis na construção do governo colonial, através da colaboração política e de relações matrimoniais. Outros organizaram uma resistência coordenada a partir do estado neoinca de Vilcabamba. Estes foram derrotados em 1572, quando seu líder, Túpac Amaru, foi preso e depois executado em Cuzco.

Houve muitas conquistas na América, outras poderiam ser mencionadas, com significativas variações cronológicas. Os índios não foram todos dominados com o surgimento da sociedade colonial, que possuía limites territoriais modestos e descontínuos. Muitos grupos mantiveram sua autonomia política. No momento das independências americanas, na virada do XVIII para o XIX, o território governado pelos índios era maior que o ocupado pelas sociedades de origem europeia. Por outro lado, os integrados à colonização em uma condição subordinada também foram capazes de reconstruir suas vidas, dando significado ao mundo que então se construía. Se tomamos tais processos da perspectiva indígena, somos capazes de perceber com outros olhos as excessivamente triunfantes narrativas europeias sobre a conquista e a colonização.


Por Elisa Frühauf Garcia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...